Fragmentos de Leituras e Sentido | Ricardo de Mattos | Digestivo Cultural

busca | avançada
133 mil/dia
2,0 milhão/mês
Mais Recentes
>>> DR-Discutindo a Relação, fica em cartaz até o dia 28 no Teatro Vanucci, na Gávea
>>> Ginga Tropical ganha sede no Rio de Janeiro
>>> Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania abre processo seletivo
>>> Cultura Circular: fundo do British Council investe em festivais sustentáveis e colaboração cultural
>>> Construtores com Coletivo Vertigem
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
>>> Soco no saco
>>> Xingando semáforos inocentes
>>> Os autômatos de Agnaldo Pinho
>>> Esporte de risco
>>> Tito Leite atravessa o deserto com poesia
>>> Sim, Thomas Bernhard
Colunistas
Últimos Posts
>>> Glenn Greenwald sobre a censura no Brasil de hoje
>>> Fernando Schüler sobre o crime de opinião
>>> Folha:'Censura promovida por Moraes tem de acabar'
>>> Pondé sobre o crime de opinião no Brasil de hoje
>>> Uma nova forma de Macarthismo?
>>> Metallica homenageando Elton John
>>> Fernando Schüler sobre a liberdade de expressão
>>> Confissões de uma jovem leitora
>>> Ray Kurzweil sobre a singularidade (2024)
>>> O robô da Figure e da OpenAI
Últimos Posts
>>> Salve Jorge
>>> AUSÊNCIA
>>> Mestres do ar, a esperança nos céus da II Guerra
>>> O Mal necessário
>>> Guerra. Estupidez e desvario.
>>> Calourada
>>> Apagão
>>> Napoleão, de Ridley de Scott: nem todo poder basta
>>> Sem noção
>>> Ícaro e Satã
Blogueiros
Mais Recentes
>>> 10 sugestões de leitura para as férias
>>> Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge
>>> O que mata o prazer de ler?
>>> Um poema de Yu Xuanji
>>> Fotografia
>>> Literatura Falada (ou: Ora, direis, ouvir poetas)
>>> Viver para contar - parte 2
>>> Ed Catmull por Jason Calacanis
>>> O cinema brasileiro em 2002
>>> O cinema brasileiro em 2002
Mais Recentes
>>> Livro Ciências Exatas Física um Curso Universitário Volume 1 Mecânica de Marcelo Alonso pela Blucher (2002)
>>> Guardião Das Sete Portas, O de Rubens Saraceni pela Cristalis (1998)
>>> Bravura Indômita de Charles Portis pela Ponto De Leitura (2012)
>>> Homens, Dinheiro E Chocolate de Menna Van Praag pela Ponto De Leitura (2011)
>>> Livro Literatura Brasileira O Diário de um Mago de Paulo Coelho pela Rocco (1990)
>>> O Cavaleiro da Estrela da Guia (Um Mergulho nas Trevas) de Rubens Saraceni pela Cristális (1997)
>>> Homens, Dinheiro E Chocolate de Menna Van Praag pela Ponto De Leitura (2011)
>>> Veil: As Guerras Secretas da CIA de Bob Woodward pela Best Seller (1987)
>>> Luta Comigo - Vol. 2 de Kristen Proby pela Charme (2015)
>>> Livro Literatura Estrangeira Werther de Johann Wolfgang Von Goethe pela Abril Cultural (1971)
>>> Dom Quixote Americano de Richard Powell pela Nova Fronteira (2003)
>>> Introdução Ao Estudo Das Ações Dinâmicas Do Vento de Joaquim Blessmann pela Ufrgs (2005)
>>> Cidade Das Sombras - O Guardiao de Daniel Polansky pela Geração (2012)
>>> Passaros Amarelos de Kevin Powers pela Companhia Das Letras (2013)
>>> O Dilema De Grantchester Grind de Tom Sharpe pela Teorema (1995)
>>> Livro Literatura Estrangeira O Médico e o Monstro Selo Negro Suspense de Robert Louis Stevenson pela Ftd (1994)
>>> Destrinchando - Uma História De Casamento, Carne E Obsessão de Julie Powell pela Record (2010)
>>> Livro Auto Ajuda Tamo Junto 25 Comportamento Poderosos Para Construir Um Relacionamento Maravilhoso Na Vida a Dois de Andréa Fernanda Morais pela Buzz (2018)
>>> Julie E Julia de Julie Powell pela Record (2009)
>>> Uma Vida Pequena de Hanya Yanagihara pela Record (2016)
>>> Morte Súbita de j.k. Roling pela Nova Fronteira
>>> Meu Inverno Em Zerolandia de Paola Predicatori pela Suma De Letras (2014)
>>> Livro Literatura Brasileira Estação Carandiru de Drauzio Varella pela Companhia das Letras (1999)
>>> The Tale of Genji de Murasaki Shikibu pela Random House Inc (1983)
>>> Krabat de Otfried Preussler pela Martins Fontes (1996)
COLUNAS

Segunda-feira, 8/8/2016
Fragmentos de Leituras e Sentido
Ricardo de Mattos
+ de 2800 Acessos

"De repente, a montanha apareceu
Cinzenta na distância; alta, tão alta
Como jamais tinha visto alguma
"
(Homero).

As Brumas do Sentido

Que a existência humana tem um Sentido é divisa que adotei com plena convicção. Certas questões seguiram meus passos, deitaram no meu travesseiro à noite e aguardaram-me pela manhã sentadas na cadeira do quarto. Que este Sentido não é dado nem prescrito, mas deve ser encontrado pelo indivíduo por meio de certa atitude espiritual parece evidente. Evidente porque superado, isto é, tendo-o encontrado, resta cumpri-lo. Olhando para trás, posso perceber que ele estava encoberto. Poderia até percebê-lo entre as brumas, mas ignorava de que já se tratava dele. "Então era isso?!" constato hoje.

O pobre indivíduo nasce esquecido de tudo que já experimentou. Precisa reaprender tudo repetidas vezes. O espírito padece de cansaço. No caminho, vozes tentam contagiá-lo com o próprio desânimo. "És apenas mais um animal". "Deus está morto". "Não há Sentido". E o vira-lata segue acossado, desanimado. Perde-se nesta estrada. Encontrar-se-á na próxima?

O vira-lata fortalece-se e posiciona-se. Diante da montanha da alma, a decisão de escalá-la é dele. Alguém o levará? Não. Deverá subir sozinho. Ou sobe, ou ficará largado na base, observando aqueles que já decidiram escalar. Falo em escalada, ascensão, em elevação, propositadamente. Na dificuldade da subida, o indivíduo deixará o que pesa demais. A cada dia terá uma visão mais ampla da paisagem. Vivenciando as dificuldades do caminho, calará melhor sua boca diante das dificuldades enfrentadas pelos demais. Pode-se subir acompanhado, é certo, mas cada um escolherá o apoio de seu pé. A partir de certa altura, o retorno é impraticável.

A montanha da alma, monumental livro de Gao Xingjian, escritor chinês ganhador do prêmio Nobel de Literatura do ano 2000, traz passagens em que o Sentido desvela-se, indo o autor da negação à desconfiança de sua presença. Recomendo com veemência a leitura desta obra, verdadeira rapsódia com capítulos de busca pessoal, reflexões e acertos com o passado, encontros, narrativas de lenda e históricas. Notadamente autobiográfica, importante reparar na rejeição do autor ao comodismo esperado pela sociedade e sua decisão de deixar de esperar por um milagre. Há uma vontade que se manifesta interiormente e impede a permanência em estado que não responda a anseios profundos. É necessário seguir, e seguir pode trazer dores: "Mas, uma vez que você está na montanha, prepare-se para sofrer!". Não sou defensor do sofrimento nem do martírio como forma de ascese, mas como fazem parte do pacote existencial, resta utilizá-los de maneira inteligente. Bater o prego na parede para pendurar o quadro envolve o risco de acertar um dedo com o martelo, perder a unha, etc. Imperioso pendurar o quadro, então assuma-se o risco da atividade. Ao abrir-se para o mundo, o indivíduo encontrará companhia, mas também decepções. Acertos e erros. Verá exaltado, mas também vilipendiado aquilo em que acredita. Haverá pessoas a seu lado e pessoas contrárias. Tudo constituirá seu patrimônio espiritual.

Sentido e Parcialidade

Depois de tanta informação a respeito da segunda guerra mundial e dos horrores cometidos contra os prisioneiros nos campos de extermínio, a leitura de É isto um homem?, de Primo Levi, acabou sendo morna. Já estaria eu anestesiado, assim como reconheço-me já insensível ao debate político-criminológico de cada dia, durante o qual políticos ainda pensam enganar alguém com as mais estapafúrdias desculpas para suas falcatruas? De qualquer forma, não poderia desencarnar sem ler o livro de Levi. Agora estou atrás de Assim foi Auschwitz, do mesmo escritor, em co-autoria com Leonardo Benedetti. Por que tanto interesse por período tão sinistro? Porque o estudo de campo de Viktor Frankl realizou-se em lugares assim e porque a desumanização, a visão reducionista, a visão do humano como objeto e meio grassam sutilmente e podem contaminar as melhores casas e famílias. Porque mantendo o Sentido diante dos olhos, fica cada vez mais fácil distinguir o que pode favorecê-lo e o que pode prejudicá-lo.

Inicialmente Levi nega um Sentido para tudo o que presenciou. No capítulo intitulado Um dia bom, porém, ele afirma: "A convicção de que a vida tem um objetivo está enraizada em cada fibra do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza. Para nós, a questão é mais simples. Hoje, e aqui, o nosso objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em outra coisa". Sem medo de ser feliz, o leitor leia "Sentido" onde está escrito "objetivo". Pode-se argumentar que a vontade de Sentido seja característica do homem, ainda que este não exista de fato. Contudo, assim como a noção de um Criador é comum à humanidade em todos os quadrantes do planeta, embora ninguém possa definir com exatidão quem é este Criador, a suspeita de um Sentido ontológico inspira as mais diversas mentes. Há um Criador e a maturidade dispensa-me de pretender definí-Lo, pois minha definição não é Ele. Há um Sentido para cada ser que rasteja neste vale de lágrimas em meio ao choro e ao ranger dentes, mas cada rastejante deverá encontrar o seu próprio e cumpri-lo por meio de sua missão. Por "missão", não queremos dizer que cada pessoa deverá fazer cair as muralhas de Jericó. Se criar direito o filho que trouxe ao mundo já está bom demais.

Esta parcialidade de Sentido que Levi menciona e exemplifica com a chegada da primavera, deve-se, segundo Frankl, ao fato de que o Sentido da vida sempre se modifica, mas jamais deixa de existir. Então a vida teria mais de um sentido? Ou é o mesmo Sentido encontrado no passo a passo da jornada? Na Tese do otimismo trágico, texto integrante do livro Em busca de sentido, o fundador da Logoterapia esclarece. Há um sentido maior, um sentido a logo prazo, como ele diz. Utilizando os recursos de sua época, compara a vida humana a um filme composto por inúmeros quadros sucessivos "cada um deles vem carregado de sentido e traz um significado, mas o sentido do filme todo não pode ser visto antes que sua sequência seja mostrada". A expressão "só por hoje" dos grupos anônimos revela sua carga terapêutica: só por hoje manter-se limpo e na sucessão das 24 horas configura-se a abstenção, a sobriedade, a recuperação. O Sentido é a saúde do sujeito.

Agressão ao Sentido

Pela manhã, havia lido no jornal a respeito do lançamento de uma antologia de contos do norte-americano O. Henry (1862-1919). Lembrando-me da possibilidade de haver algum texto deste escritor, procurei na estante por determinada coleção. Leitores de sessenta anos atrás talvez lembrem-se de uma coleção de contos em que o título de cada volume começa com "Maravilhas": Maravilhas do conto português,Maravilhas do conto inglês. Ignoro se a editora Cultrix ainda atua no mercado, mas um de seus melhores trabalhos é o lançamento desta coleção. Acreditava limitar-se a dez volumes, mas já encontrei outros que fogem ao nacionalismo e ligam-se a um tema: Maravilhas do conto de humor, por exemplo. Os dez volumes inicialmente herdados de meu avô foram encadernados com capa marrom café.

Lá estava o conto de O. Henry, pseudônimo de William Sidney Porter. Prisão sem grades. Percebi que poucos contos foram lidos deste volume e decidi dedicar-me a mais alguns. Caro leitor: as voltas que dou nesta coluna para chegar ao ponto refletem as voltas que dei para chegar ao texto que realmente quero mencionar. É que gosto da coleção de contos e há tempos não a consultava. Várias páginas adiante escolhi Os crisântemos, de John Steinbeck (1902-1968), ainda encarnado à época da edição (1958).

Narra o conto o encontro entre uma fazendeira e um trabalhador ambulante, dedicado a consertos em geral, enquanto o marido encerrava alguns trabalhos no campo. Steinbeck já havia descrito a dedicação de Elisa - a fazendeira - ao seu canteiro de flores, entre as quais os crisântemos "com um palmo de diâmetro". Percebe-se que a este cultivo a personagem dedicava suas melhores energias de sua existência, no mais, apagada. Enlevada pela jardinagem e na expectativa de outra esplêndida florada, Elisa vê adentrar a propriedade o ambulante, simplesmente referido como "o homem". Depois de conversarem e de ele realizar pequeno reparo numa panela, o homem informa à fazendeira que certa vizinha gostaria muito de ter flores como as que ele estava vendo no jardim. Afetada naquilo que a justifica perante si mesma e perante o mundo, Elisa cede alguns brotos para o homem levar a tal vizinha. A partir deste momento, dois estados de ânimo verificam-se na personagem.

Primeiro, espécie de orgulho invade-a, decorrente da satisfação de ver seu trabalho reconhecido e disseminado. Percebeu que o homem tomou outro caminho, não o que o levaria até a propriedade mencionada. Mas sua visão foi comprometida pelo sentimento agradável de ver uma pessoa levar para outra um "vaso vermelho e grande" com os frutos de sua dedicação. Apesar de cumprir a rotina junto ao marido, parecia ter encontrado a consagração. O que realmente é próprio de quem exerce a tarefa que encontrou para si. Dentro dos limites de sua vida pacata, o entusiasmo de Elisa fê-la considerar algumas pequenas mudanças. Alma satisfeita com o reconhecimento parece expandir-se e procura caminhos por onde isso possa ocorrer, as chamadas "válvulas de escape". Contudo, mesmo diante do reconhecimento "de boca" de uma tarefa, é necessária maturidade para acolhê-lo. Maturidade que faltou à personagem e levou-a ao segundo estado de ânimo.

Seguindo com o marido pela mesma estrada do homem, deparou-se com cena que lhe afetou o orgulho inicial. Os brotos selecionados e acomodados no vaso foram atirados à beira da estrada pelo homem que, ao que tudo indica, jamais dar-se-ia ao trabalho de levá-los tão longe. O recipiente era tudo o que lhe interessava. "Se rotas, em pedaços,/ as coisas por que tu sacrificaste a vida,/ curvado as reconstróis com os teus doridos braços", versejou Kipling... Mas Elisa, afastada do convívio social e provavelmente desconhecedora do poeta, não conseguiu ficar "sem uma queixa, uma palavra de lamento" (a tradução é de Gondin da Fonseca). Esta intromissão entre o ser e sentido pode ser dolorosa. É mais fácil aceitar que um empreendimento falhe pela própria inépcia que pela intervenção dolosa de outrem. Cada broto despejado à beira da estrada era um "crisântemo de mais de um palmo" que foi abortado, um poder-ser que não se concretizou. Se a autotranscendência de Elisa verificava-se no cuidado com as flores, Steinbeck permite ao leitor, em poucas linhas, acompanhar esta agressão ao Sentido.


Ricardo de Mattos
Taubaté, 8/8/2016

Mais Ricardo de Mattos
Mais Acessadas de Ricardo de Mattos em 2016
01. A biblioteca de C. G. Jung - 15/2/2016
02. Omissão - 28/11/2016
03. Livrarias - 30/5/2016
04. Ação Social - 25/4/2016
05. Srta Peregrine e suas crianças peculiares - 5/9/2016


* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site



Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Antes que o Dia Acabe Seja Feliz + Você Pode!
Ajahn Brahm; Paul Hanna
Fundamento
(2009)



A história das camisas de todos os jogos das copas do mundo
Rodolfo Rodrigues
Panda Books
(2010)



Motorcycle Classics
Doug Mitchel
Publications Internacional



Pare de gostar do que te faz mal
Teco Mendes
Clube de Autores
(2019)



Os Bárbaros na Europa
Gerald Simons e Os Redatores dos Livro Time-Life
Livraria José Olympio
(1970)



Fundamentos do Mercado de Capitais
Umbelina Cravo Teixeira Lagioia
Atlas
(2011)



Linguagem Forense
Edmundo Dentes Nascimento
Saraiva
(1980)



És a Minha Melhor Amiga - Odeio-te!
Rosie Rushton
Presença
(2000)



Escândalo na Sociedade
Harold Robbins
Círculo do Livro
(1988)



Otimismo Em Gota
R. O. Dantas
Otimistas
(1977)





busca | avançada
133 mil/dia
2,0 milhão/mês