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Sexta-feira, 21/5/2010
O altar das montanhas de Minas
Rafael Rodrigues


Ouro Preto

Não deixa de ser curioso o fato de, há cerca de quatro anos, os livros do jornalista e escritor mineiro Jaime Prado Gouvêa estarem disponíveis para aquisição apenas em sebos. Nascido na metade da década de 1940, Jaime Prado trabalhou no Jornal da Tarde e na sucursal de O Globo em Minas Gerais, além de ter integrado o Suplemento Literário de Minas Gerais em diversas fases do periódico, do qual é hoje superintendente.

A curiosidade reside no fato de, apesar de não ter sido um escritor inveterado, Jaime ser autor de uma obra portentosa, apesar de curta. No espaço de dezesseis anos, teve três livros de contos publicados: Areia tornando em pedra (1970), Dorinha Dorê (1975) e Fichas de vitrola (1986). Além desses, em 1991 publicou seu único romance, O altar das montanhas de Minas. Desde então, Jaime absteve-se de publicar ― e, a partir de certo ponto, escrever ― ficção.

Depois de dezesseis anos ― coincidência? ― sem nada publicar, em 2007 foi editada uma seleção do que de melhor havia nos seus livros de contos, segundo o autor, juntamente com mais (em suas palavras) "dois contos e meio" inéditos. Daí se originou o volume Fichas de vitrola & outros contos, uma obra "firme, forte, delicada", como diz o também jornalista e escritor Humberto Werneck, no prefácio do livro. Era o começo do retorno de Jaime Prado Gouvêa às livrarias.

Agora, neste início de ano, foi publicada uma nova edição de O altar das montanhas de Minas (Record, 2010, 208 págs.). Na orelha da primeira edição, reaproveitada nesta nova, Caio Fernando Abreu diz que o romance é "um dos livros mais fortes, belos e comoventes que li nos últimos tempos". Não é nenhuma surpresa, para aqueles que tiveram algum contato com a obra do escritor mineiro, que as palavras de Caio F. continuem de pé, mesmo passados quase vinte anos da publicação original da obra, que não perdeu seu vigor com o tempo.

Tal como a Divina Comédia de Dante Alighieri, O altar das montanhas de Minas é dividido em três partes, cujos títulos poderiam ser os mesmos da obra de Dante, com uma pequena inversão: a primeira seria o Paraíso; a segunda, o Inferno; e, a terceira, o Purgatório ― mas, como que para encerrar o ciclo, caminhando para o Paraíso.

O protagonista do romance é um jornalista, Dirceu Dumont. Logo nas primeiras páginas, fica-se sabendo que Dumont está começando a escrever um romance, cujo protagonista chama-se Álvaro Garreto, pseudônimo originado do cruzamento entre Almeida Garrett (escritor português), Antonio Barreto (poeta mineiro) e Álvaro de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa).

A ideia de escrever o livro vem depois que uma certa Marília (clara referência ao poema "Marília de Dirceu", de Tomás Antônio Gonzaga) lhe entrega vários escritos de Garreto, dizendo-lhe que ele e Dumont são parentes. Porém, Marília não revela a verdadeira identidade do escritor com quem, supostamente, teve um caso de amor. É para forçar-se a pesquisar sobre esse misterioso antepassado que Dumont decide escrever um livro sobre ele.

Ao tentar descobrir quem de fato era Álvaro Garreto, Dumont retoma contato com um ex-colega de redação, o Rezende, através do qual conhece Bárbara, uma mulher misteriosa que lhe levará ao inferno: na volta de uma viagem que fazem a Ouro Preto ― em parte para procurar pistas de Garreto, em parte para se lançarem em uma aventura amorosa ―, eles sofrem um grave acidente de carro. É o começo da derrocada de Dirceu Dumont.

Apenas ele escapa com vida, e para isso contou com uma boa dose de sorte. Somente depois de passar seis meses no hospital, entre cirurgias e tratamentos ― ele agora precisará de uma bengala para poder andar ―, é que Dirceu tem alta. Em seguida vê-se obrigado a abandonar Belo Horizonte e vai morar em Ouro Preto ― consequência de sua inconsequente relação com Bárbara, cujo passado é comprometedor. Já na cidade histórica, torna-se cliente assíduo de um bar na zona boêmia da cidade, cujo dono é um mineiro que se diz espanhol.

Aposentado por invalidez, sem parentes nem amigos, Dumont vive seus dias em Ouro Preto como se fosse um personagem de Beckett, à espera de um Godot que ele sequer sabe se existe e que talvez não apareça jamais.

Apesar das várias referências literárias ― sendo uma delas a Fichas de vitrola ― e do "romance dentro do romance" ― que, no fim das contas, não se concretiza ―, O altar das montanhas de Minas não chega a ser um "metalivro", porque a elas se sobrepõe a vida de Dirceu Dumont e seus revezes, muito menos uma daquelas obras repletas de citações e referências que muitas vezes mais atrapalham do que ajudam. Essas menções, na verdade, são artifícios utilizados pelo autor para, de certa forma, "brincar" com um gênero literário tão praticado na história da literatura, os livros dentro dos livros.

O que está em foco, em O altar das montanhas de Minas, é a história de um homem que, por causa de um movimento mal ensaiado, de uma decisão infeliz, perde o rumo de sua vida e é obrigado a reaprender a viver. Felizmente para Dumont, e também para o leitor que o acompanhar nesta jornada que começa paradisíaca, se torna cruel e termina de maneira terna, nem toda esperança está perdida. As montanhas de Minas lhe reservam um final que, se não é feliz, ao menos não é trágico.

Jaime Prado Gouvêa é um autor que, ainda segundo Caio F., "só peca por publicar tão pouco". Quem sabe agora, com o ressurgimento de seus livros para a nova geração de leitores, Jaime Prado volte a escrever e publicar. Mas, caso isso não aconteça, ao menos tem-se nova oportunidade de ler este escritor de grande talento cuja obra é pequena em quantidade, mas enorme em qualidade e abrangência.

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 21/5/2010

 
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