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Terça-feira, 12/2/2002
Eu quero é rosetar
Bruno Garschagen

Todo carnaval é a mesma chatice. Se não fosse o feriadão a nos livrar do flagelo bíblico que é o trabalho, esta época do ano não passaria da modorrenta e tradicional comemoração dos bárbaros. Haja álcool e charuto para agüentar desfile de escola de samba na tevê, a turma do funk explodindo os alto-falantes dos carros, musica de axé (seja lá o que isso signifique) e falsos sorrisos de satisfação.

Aliás, não há nada que represente tão bem a felicidade do que o canibal, digo, carnaval brasileiro. É aquela festança toda, neguinho gastando os tubos, soltando cheque pré-datado aos quatro cantos — que nunca serão cobertos ou, se cobertos, babau o bife da semana —, gargalhando no maior nível possível de decibéis para disputar com o trio elétrico, enfim, aquele rompante de alegria com prazo de validade: a quarta-feira de cinzas, que não poderia ter recebido um nome melhor.

Por isso considero Aristóteles um grande sujeito. Dizia que ao ser humano é muito melhor o bem-estar, pela constância do sentimento de prazer, do que a felicidade, composta de fagulhas breves e pequenas cócegas.

Desde criança ouço a tal previsão, exata como matemática, de que o ano só começa depois do carnaval. Nunca falha. Isso nos leva a uma outra previsão altamente temerosa e praticamente infalível, como a de que terminando fevereiro, inexoravelmente, entraremos sem pudor no mês de março: quem precisar de alguma coisa em 2002 vai ter que se mudar para o Japão. Porque, depois da festa, o país envereda pelo estresse da Copa do Mundo (com esses “craques” e o tal de Chimarrão, haja Lexotan) e, em seguida, na curiosa torcida nas eleições: que venha o menos pior (essa frase em espanhol deve soar bem pacas).

Para não ser tão rabugento — e, nesse caso, seria absolutamente indispensável — o bacanal, digo carnaval, além dos dias de ócio contemplativo, suscita belas imagens. A simbiose de calor, música frenética (e inaudível), dança e álcool, libera as mulheres de todos os pruridos. Pecado capital? Só em marchinha de carnaval. A turma feminina sai às ruas com algumas tiras de tecido e tornam qualquer ambiente mais agradável... e quente!

Deixemos esses comentários de lado, para não cair no machismo barato — vala em que todos os homens, não raro, caem ao tentar descrever a libido. Já que escrevi sobre marchinha de carnaval e, aproveitando o aniversário de morte do Francis (gostaria de saber quem foi o mágico que inventou essa comemoração funesta), sinto saudades do tempo em que aquelas musiquinhas eram cantadas nas ruas. Bem, sentir falta é uma figura de linguagem barata, porque dos anos 30 aos 60 eu nem pretendia entrar neste mundo de desejos ilimitados para realizações limitadas (com a devida licença de meu caro Schopenhauer). É uma saudade desencarnada, creio. Sabe, aquele papo de ter vivido em outras épocas e encarnado nesta atual. Se for verdade, acho que vivi, pelo menos, na Europa Iluminista e nos anos 30 nos EUA. Sinto como se tivesse passeado na companhia de Voltaire e de ter bebido horrores com a tropa do Hotel Algonquin. A brasileirada se esbaldando no carnaval e este pretensioso signatário feliz até o último gole de uísque na prosa com Edna Saint Vincent Milay, Dorothy Parker, Edmund Wilson, John dos Passos. Ah!, se Paris era uma festa os EUA daquela década eram um desbunde!

Muito embora a mente viaje sem visto, não devo esquecer da condição de estar preso ao presente "in real time". O que significa dizer que quando este texto for lido meu presente já será passado por culpa da ampulheta e o leitor estará num futuro próximo — o que, quase equivale a uma nova dimensão espaço-temporal, sacaram? Espero, pois não tenho condições de elaborar certas explicações.

Se vocês nada entenderam de minha análise sobre o carnaval, não esquentem, porque eu me perdi no segundo parágrafo. E, para encerrar de forma triunfal meu arrazoado, me vem à cabeça uma música que nem é da festa popular, mas o refrão é um primor de originalidade: "não me importa que a mula manque/ o que eu quero é rosetar".

Para não dizer que...

Uma situação interessante do carnaval de rua é a mudança que vem ocorrendo no perfil da festa nas últimas décadas. Se antes a folia tinha um caráter eminentemente popular, a onda agora é ficar com a patota isolado do populacho pelas cordas dos blocos ou nos camarotes.

...não falei das flores

Em Salvador (BA) os blocos ganham horrores encarcerando a classe média e os novos ricos (os velhos também) nos abadás — aquela roupinha ridícula que identifica quem pagou. O único trio famoso que continua tocando para o baixo clero é o de Armandinho, Dodô e Osmar. Com patrocínio da prefeitura (sempre na última hora), o trio dos irmãos filhos do falecido Osmar tenta manter a festa popular. O resto vai na base do "farinha muita meu pirão vem com acarajé".

De qualquer forma, não suporto os trios nem a turma que vai atrás deles. É preferível ser um morto (não Caetano Veloso?) a um moribundo que vai atrás do caminhão amplificado. E tenho dito.

Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 12/2/2002

 
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